quarta-feira, julho 01, 2009

 

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Aqui mesmo, nesta coluna, já fiz justiça ao canalha. É uma figura de incalculável riqueza interior. Tem uma irisada complexidade, que falta justamente ao justo, ao virtuoso, ao honrado. E vamos e venhamos: – é repousante encontrar uma dessas criaturas que encerram toda a variadíssima sordidez da condição humana. O diabo é que é difícil, dificílimo, senão impossível, descobrir um canalha. Eis a verdade, amigos: – ninguém quer ser canalha, ninguém. Saiamos de porta em porta. E, por toda a parte, só encontraremos sujeitos honestíssimos, senhoras que não prevaricam nem com os próprios maridos. Até hoje, jamais apareceu alguém com bastante pureza interior para anunciar: - “Eu sou um canalha abjeto!” E que autorizasse: - “Cuspam-me na cara!” Vejam vocês: – o homem é tão pusilânime que não quer ser cuspido nem por decreto. E já que nenhum canalha se apresenta como tal, é quase impossível caracterizá-lo. Ele não tem nenhum odor específico, nenhum estigma material, nenhum escudo, nenhum distintivo de lapela, que o individualize entre muitos, entre todos. Aqui pergunto? – como saber se o nosso amigo, o nosso companheiro, o nosso sócio é um puro ou um miserável? como vislumbrar-lhe, por detrás da face externa  e suspeita, a fisionomia interior e autêntica? É um problema de sorte. Por outras palavras: – o canalha só se manifesta sob o stímulo de uma circunstância favorável.

Foi o que aconteceu, há tempos, numa excursão de rapazes e moças, ao Dedo de Deus. O alpinismo, no Brasil, é o esporte mais soturno que se possa imaginar: – falta-lhe o principal, que é a neve. O sujeito sabe que não vai virar picolé. De qualquer forma, justiça se lhe faça: – considero aquele que escala qualquer coisa um herói de Stalingrado. Pois bem: – sem que ninguém soubesse ou pudesse imaginar infiltrou-se, no grupo, o canalha. Desde o primeiro momento, o homem atraiu simpatias furiosas. Ninguém mais cordial e, mesmo, doce. Tinha bons dentes, boas anedotas e um tubo de drops, que prodigalizou, copiosamente. Já os outros excursionistas cochichavam entre si: “Liga pra chuchu!” Sim, muitíssimo liga. Até que a caravana resolveu fazer um alto para o banho ao ar livre. Adotou-se a medida normal: – os rapazes para um lado; as moças para outro. Todo mundo caiu n’água, que estava uma delícia completa. Súbito, um dos rapazes, justamente o noivo de uma das pequenas, pergunta: - “Quêde o Fulano?” O Fulano era o canalha. Procura daqui, dali e nada. Então, o noivo, com essa clarividência homicida do ciúme, deu o berro: - “Já sei, já sei!” Imediatamente organizou-se e partiu a expedição punitiva. E, de fato, foram encontrar o miserável, pendurado de um galho, engrinaldo de folhas, assistindo ao banho das moças. Era justo, era mesmo necessário ou mesmo obrigatório, que se arrancasse, dali, o Pan sem flauta e o corressem a pontapés, a bofetões, a cusparadas. Mas os rapazes, que chegavam, incidiram num erro técnico: – arriscaram um olhar na direção das moças. Aconteceu o seguinte: essa nudez múltipla e molhada, que a luz valorizava, subiu-lhes a cabeça. Cada um, inclusive o noivo, ocupou seu galho estratégico, para o banquete visual. Por fim, as moças deixaram o rio, enxugaram-se, vestiram-se. Só então os outros se lembraram do canalha. Já sabe: deram-lhe uma surra tremenda.

 

21/11/1956”

 

Rodrigues, Nelson, 1912-1980

O berro impresso das manchetes / Nelson Rodrigues. – Rio de Janeiro: Agir, 2007.

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