Quando vocês olham pra este símbolo, não dá pra ver claramente que é um coelho deformado, no lugar de uma inocente pombinha?

E me chamaram de Mão Branca
9
Aqui mesmo, nesta coluna, já fiz justiça ao canalha. É uma figura de incalculável riqueza interior. Tem uma irisada complexidade, que falta justamente ao justo, ao virtuoso, ao honrado. E vamos e venhamos: – é repousante encontrar uma dessas criaturas que encerram toda a variadíssima sordidez da condição humana. O diabo é que é difícil, dificílimo, senão impossível, descobrir um canalha. Eis a verdade, amigos: – ninguém quer ser canalha, ninguém. Saiamos de porta em porta. E, por toda a parte, só encontraremos sujeitos honestíssimos, senhoras que não prevaricam nem com os próprios maridos. Até hoje, jamais apareceu alguém com bastante pureza interior para anunciar: - “Eu sou um canalha abjeto!” E que autorizasse: - “Cuspam-me na cara!” Vejam vocês: – o homem é tão pusilânime que não quer ser cuspido nem por decreto. E já que nenhum canalha se apresenta como tal, é quase impossível caracterizá-lo. Ele não tem nenhum odor específico, nenhum estigma material, nenhum escudo, nenhum distintivo de lapela, que o individualize entre muitos, entre todos. Aqui pergunto? – como saber se o nosso amigo, o nosso companheiro, o nosso sócio é um puro ou um miserável? como vislumbrar-lhe, por detrás da face externa e suspeita, a fisionomia interior e autêntica? É um problema de sorte. Por outras palavras: – o canalha só se manifesta sob o stímulo de uma circunstância favorável.
Foi o que aconteceu, há tempos, numa excursão de rapazes e moças, ao Dedo de Deus. O alpinismo, no Brasil, é o esporte mais soturno que se possa imaginar: – falta-lhe o principal, que é a neve. O sujeito sabe que não vai virar picolé. De qualquer forma, justiça se lhe faça: – considero aquele que escala qualquer coisa um herói de Stalingrado. Pois bem: – sem que ninguém soubesse ou pudesse imaginar infiltrou-se, no grupo, o canalha. Desde o primeiro momento, o homem atraiu simpatias furiosas. Ninguém mais cordial e, mesmo, doce. Tinha bons dentes, boas anedotas e um tubo de drops, que prodigalizou, copiosamente. Já os outros excursionistas cochichavam entre si: “Liga pra chuchu!” Sim, muitíssimo liga. Até que a caravana resolveu fazer um alto para o banho ao ar livre. Adotou-se a medida normal: – os rapazes para um lado; as moças para outro. Todo mundo caiu n’água, que estava uma delícia completa. Súbito, um dos rapazes, justamente o noivo de uma das pequenas, pergunta: - “Quêde o Fulano?” O Fulano era o canalha. Procura daqui, dali e nada. Então, o noivo, com essa clarividência homicida do ciúme, deu o berro: - “Já sei, já sei!” Imediatamente organizou-se e partiu a expedição punitiva. E, de fato, foram encontrar o miserável, pendurado de um galho, engrinaldo de folhas, assistindo ao banho das moças. Era justo, era mesmo necessário ou mesmo obrigatório, que se arrancasse, dali, o Pan sem flauta e o corressem a pontapés, a bofetões, a cusparadas. Mas os rapazes, que chegavam, incidiram num erro técnico: – arriscaram um olhar na direção das moças. Aconteceu o seguinte: essa nudez múltipla e molhada, que a luz valorizava, subiu-lhes a cabeça. Cada um, inclusive o noivo, ocupou seu galho estratégico, para o banquete visual. Por fim, as moças deixaram o rio, enxugaram-se, vestiram-se. Só então os outros se lembraram do canalha. Já sabe: deram-lhe uma surra tremenda.
21/11/1956”
Rodrigues, Nelson, 1912-1980
O berro impresso das manchetes / Nelson Rodrigues. – Rio de Janeiro: Agir, 2007.
Da falta que Deus me faz
Como a grande maioria aqui sabe, tenho dúvidas da existência de deus (ou força superior, chame da maneira que lhe agradar), pelo fato de não conseguir acreditar somente por meio da fé.
Não sou, contudo, um ateu, que o nega peremptoriamente, com os argumentos que estamos carecas de ouvir, fome, peste, guerra, racionalidade, ignorância, sociedades primitivas etc. Esta diferença é importantíssima
Em outras palavras, agnóstico.
Desnecessário entrar em questões como a militância (a)teísta, ou mesmo a agnóstica. Acho que a questão é individual, crentes não são otários iludidos e ateus não são pecadores destinados ao mais profundo dos infernos. Particularmente, não me faz muita diferença a escolha alheia. Importante é não dar sermão para impôr posição.
Dito isto, ao que importa.
Não é que deus me faz faaaaaalta. Me faz sim, mas não no cotidiano. Não tenho a frieza para, nos momentos de tristeza e solidão, fingir que nunca acreditei nele, mas não lembro a última vez que rezei um pai-nosso, quase uma década, pouco mais, pouco menos. Enquanto tá tudo bem, deus lá longe. Quase o caçador ateu rezando pra onça não devorá-lo. Por uma questão de honestidade intelectual, não consigo rezar naquele momento que mais preciso de colo. Não supero a minha dúvida. E, de uns anos pra cá, a impossibilidade de tomar partido se tornou um enorme incômodo. E é este o problema, não saber se eu posso rezar.
A vida se tornou de verdade, emprego, relacionamentos longos, assim como os problemas. Enquanto tá tudo bem, deus lá longe. Agora, quando a cama se torna fria e a dor parece que nunca vai passar, eu invejo aqueles que têm posição. Não pelo conforto de saber que deus ajudará ou que o ser humano é falho e somos senhores das nossas escolhas, mas por terem a segurança disto.